Em 1964, os Beatles mostravam de maneira muito bem humorada que musica dá trabalho. Em “A Hard Day’s Night”, o grupo, em plena beatlemania, corria de um lado para outro a fim de dar conta da agenda. Corria também dos fãs, que arrancavam roupas e cabelos dos ídolos para ter um pedacinho do famoso em casa. Mas, tirando o bom humor e os exageros cinematográficos, a música – e a cultura como um todo – dá muito trabalho. O tempo dedicado ao ócio criativo (que também faz parte do trabalho!) e ao glamour é pequeno se comparado com as viagens, ensaios, shows e compromissos que a carreira pede.
Eu não sei em qual momento foi e em qual o contexto, mas, na percepção de muita gente, a cultura se distanciou da palavra “trabalho”. E não estou falando daquela pergunta a um músico, em formato de piadinha: “Legal, você é guitarrista. Mas trabalha em quê?”. Isso é folclore. O que acontece hoje é um movimento raivoso mesmo. E isso ficou muito claro em muitas respostas a movimentos culturais que nasceram para arrecadar fundos para o Rio Grande do Sul, que vive essa hecatombe climática. A primeira coisa que surge, quase que instantaneamente, é uma cobrança nominal a diversos artistas sobre o que eles doaram, em dinheiro, para os atingidos. Como se uma coisa levasse a outra automaticamente. Afinal, aquele artista ganha dinheiro “no mole” e é obrigação dele ajudar a todos. Nem vou citar que essa cobrança recai majoritariamente em artista ligados ao lado esquerdo da política porque numa pesquisa superficial isso vai parecer óbvio. Também não cito a centena de artistas que doam sem uma câmera filmando e que nem gostam da divulgação desse ato.
Mais grave é o que vem na sequência. Diversas lives e apresentações foram agendadas (e algumas já realizadas) para arrecadação de dinheiro para o Sul e creio que essa seja uma forma justa de um artista colaborar com a causa. Ele vai lá, doa um dia do seu trabalho (ou mais, se houver ensaio), chama outros colegas para fazerem o mesmo e ainda negocia os custos daquilo. Sim, as pessoas se esquecem (ou não sabem, não sei!) que existe um custo para qualquer artista sair da sua casa e se apresentar. Há técnicos, há roadies, outros músicos, assessoria de imprensa, produtores e empresários envolvidos – e que na imensa maioria das vezes também concordam em doar seu dia de trabalho pela causa justa. Mas tudo isso é negociado, arranjado, para que a live saia. E muitas vezes, para baratear o processo, muitos profissionais nem são requisitados. E, mesmo assim, há reclamação por parte de algumas pessoas. “Devia tirar do seu dinheiro em vez de pedir doação para o povo” é uma frase comum nos comentários. “Lei Rouanet” é outro termo muito comum – uma lei que, sim, requer ajustes, mas é importante para a movimentação do mercado da cultura e seus trabalhadores. Enfim, quantos desses comentaristas doariam o equivalente a um dia do seu trabalho para uma causa justa e coletiva?
No cinema nacional recente, alguns filmes passaram a colocar nos créditos finais o número total de empregados direta e indiretamente naquela obra. Porque aquela lista interminável de trabalhadores não era suficiente, precisava indicar numericamente pra ver se as pessoas se sensibilizavam. Mas acaba que isso se torna apenas discurso pra convertidos. Quem foi ver tal filme já é, de certa forma, um simpatizante da cultura. Quem aguarda até o final dos créditos finais, mais ainda. A ideia é boa, mas não serve para mudar a ideia de ninguém.
Alguns artistas da música também dão os “créditos finais” ao fim de um show. E mesmo esses, não incluem toda a massa trabalhadora envolvida num evento porque é impossível. Não há o nome do motorista da van, o nome do bilheteiro (quando há o balcão físico), o nome de quem recebeu o público etc. São muitas as pessoas envolvidas no processo da cultura e a maior parte é invisível mesmo praqueles que se preocupam com a causa. Parece tudo automático, normal, naturalizado. Aquela pessoa que recebe o público conferindo o ingresso está ali quase que de maneira invisível. Não é vista como um posto de trabalho, uma pessoa que está tirando seu sustento daquela função – entre outras.
Talvez alguns artistas de hoje tenham que repetir o ato dos Beatles de 60 anos atrás e gravar, cada um, o seu próprio “A Hard Day’s Night”. Se colocar como um trabalhador, no sentido amplo da palavra. Deixar claro quantos aniversário de pessoas queridas, casamentos de amigos e datas especiais já perderam para que o público o tivesse num palco, numa cidade distante da sua ou num país que fala outra língua. Quantos nascimentos e velórios já perderam ou chegaram atrasados por conta de longas e cansativas viagens. E, mesmo assim, não sei se isso vai ser suficiente para mudar a opinião de alguém que acha que cultura é algo supérfluo e que “artista ganha dinheiro no mole”. Será que só abrindo os custos, como se fosse uma empresa pública? Enquanto isso, veículos tidos como sérios seguem fazendo pautas sobre cachês de eventos como a Virada Cultural sem contextualizar que, dentro daquele valor (alto, sim, para o dia a dia da maioria da população) está incluído todo o custo da realização do show.
Cultura dá trabalho. E o trabalhador da cultura agradece – quando não precisa ficar respondendo comentário acusatório em rede social.